Sinistro
Por Marcos Faria
Eu admito que não sou muito sociável, principalmente com homens, pois você não pode ser uma mulher educada que logo vão achando que você está interessada neles. Mas por mais antissocial que eu seja, não pude resistir ao jeito do meu novo colega de trabalho. Sujeitinho estranho no sentido mais legal da expressão. Desde que comecei nesse novo emprego foi Alexandre, vulgo “Xandão” que melhor me recebeu. Até desconfiei que era porque pegamos os mesmos ônibus, mas com o passar do tempo, constatei que era o jeito dele mesmo. Extremamente simpático, culto, alegre e extrovertido, do tipo que pode irritar muita gente, mas que no final das contas cai na graça de todos.
Não demorou muito para que ele passasse a se sentar no mesmo banco do ônibus que eu. O que era um alívio para mim, antes um homem conhecido do que os escrotos de sempre que não podem se sentar ao lado de uma mulher que seus “sacos” ficam gigantes e sentem a necessidade de ficarem com as pernas abertas encostando a coxa na gente.
Mas uma coisa começou a me chamar a atenção em relação ao “Xandão”. Toda vez que passávamos em frente ao cemitério, ele mudava radicalmente seu jeito, ficando quieto e em silêncio, o que quebrava totalmente seu jeito de ser.
Aquilo ficou em minha cabeça e antes eu não tivesse perguntado sobre, pois o que ele me contou mudou meu jeito também.
Foi logo no início do mês quando brincávamos que nosso salário mal tinha caído na conta e já não havia mais nada lá. No meio da gargalhada ele fez de novo, ficou sério olhando para frente e eu percebi que estávamos passando naquele mesmo lugar de sempre, em frente ao cemitério. Olhei para ele e depois virei me para a janela para confirmar que era o cemitério, não me contive:
“Xandão, me desculpe perguntar, deve ser algo pessoal, mas por que toda vez que passamos aqui você fica todo sério e tenso?”
“Ah! Você vai achar bobeira, nem merece que eu conte, vai me zoar” Ele respondeu com um tom levemente melancólico.
“Não, não! Pode me contar, somos amigos e se é tão sério assim para você, jamais faria piada com isso” Respondi.
“Então … Eu morava nessa rua, naquele prédio verde com varanda que dava para ver só portão do cemitério na época, as árvores tampavam a visão do lugar e por isso eu nunca tinha ficado incomodado em morar de frente para um lugar tão funesto. Mas um evento na rua me fez lembrar desse detalhe …”
“Ah meu deus! Você viu um fantasma?” Eu fui questionando, mas com tom apreensivo, pois eu realmente levo essas coisas com muita seriedade dado minha religiosidade.
“Eu não sei, me diga você quando eu terminar, pode ser?” Ele respondeu pensativo.
“Ok, continue.”
“Certa vez eu estava voltando da padaria a noite, e como disse, eu nem me lembrava envolto a vida cotidiana que tinha esse cemitério, até que nesse dia eu tropecei e deixei cair a sacola que tinha maçãs e elas saíram rolando chão a fora quando eu comecei a pegar. Notei que uma bateu no pé de um “cara sinistro” que eu nem tinha reparado que estava lá. Um senhor com um capote preto que ninguém normalmente usa combinando com chapéu. Chapéu! Quem é que usa chapéu?”
“Estranho mesmo, se fosse nessas cidades do interior …”
“Exatamente! O ‘cara’ não parecia ser daqui, eu olhei no rosto dele, uma face branca, lisa que não parecia de velho, mas com rugas de velho! Não sei explicar. Eu esperei que ele pegasse como qualquer pessoa que pelo menos finge ser gentil faria, mas ele andou chutando a maçã para minha surpresa”
“Que grosseria”
“Mas quando ele passou por mim que ainda estava agachado e olhou nos meus olhos, eu senti um frio na espinha, como se um frio tivesse entrado em algum buraco na minha nuca e descido pela minha coluna … Eu até caí sentado! Os olhos do cara eram meio acinzentados e vazios de gente ou bicho que está morto ou morrendo entende?”
“Mais ou menos, igual nos filmes?”
“Tipo isso. O segui com os olhos até que ele entrou no cemitério”
“Mas é por causa desse sujeito estranho que você fica apreensivo quando passamos aqui?”
“Então, não termina com isso, não foi só esse dia, se fosse só essa situação eu até esqueceria ou diria em uma conversa qualquer do dia que um velho esquisito me deu um ‘olhar da morte’, contaria rindo feito louco … Mas tem mais”.
“Continua então!” Exclamei séria e agora dominada pela curiosidade.
“Naquela semana, cortaram as árvores pois estavam com os troncos apodrecidos e oferecendo risco e tal, então eu passei a ter visão do cemitério. Eis que um dia eu estava na sala e sai para a varanda e infelizmente lembrei do velho e dito e feito! Olhei para lá e ele estava no meio de uns túmulos próximos ao muro. Mas aquela hora o cemitério já estava fechado! Eu fiquei cismado com aquilo e continuei olhando aquele sujeito sei lá! Por horas! Estático igual uma estátua. Quando escutei meu pai andando na sala fui lá chamar ele para ver aquela coisa estranha, mas quando voltamos não tinha mais ninguém, meu pai disse que era coisa da minha cabeça, mas eu sei que não era”
“Ele devia trabalhar lá não?”
“Então! Ainda não acabou!” Ele disse olhando para o chão e batendo nas coxas levemente nervoso, mas não comigo que o interrompia e sim com a história.
“Como assim? O que mais aconteceu”
“Eu passei a vê-lo esporadicamente no mesmo lugar várias vezes. Naquela época a gente não tinha câmera fotográfica no celular para ter prova dessas coisas estranhas, mas eu juro para você que eu o via. Um dia, um único dia, ele se mexeu, na verdade a cabeça e eu senti que tinha lançado seu olhar na minha direção e novamente aquela sensação de frio na nuca … Eu nunca mais tive coragem de olhar para o cemitério”
“Nossa, te entendo, mas continuo achando que ele poderia ser só um trabalhador do cemitério, acho que alguns até moram no lugar e tal”
“Mas não acabou, o pior não foi isso”
“Ok, agora eu realmente comecei a sentir medo. Me conte, o que mais poderia ter acontecido?”
“Meu pai morreu, mas não tem ligação alguma com isso, o fato é que o enterro foi nesse cemitério, é onde tem o jazido da minha família.
“Que coincidência então”
“No dia do enterro do meu pai, quando todos começaram a ir embora, eu fui burro! Pois já tinha superado de certa forma aquela agourenta história, mas fui lá no lugar exato em que costumava ver o sujeito, estava de dia, sol rachando no céu, não tinha nada a temer certo?”
“É, de noite nem se me pagassem eu ia lá ver”. Comentei com um sorriso sem graça já que a história não era de se rir e ele continuou a contar, ignorando minha graça.
“Eu parei no mesmo lugar, olhei em volta até que dei atenção para o túmulo à frente … “
“Ah meu deus! Era dele?”
Ele só me respondeu acenando com a cabeça apertando os lábios com a expressão mais séria que eu já tinha visto na vida para em seguida dar uma bufada como se tivesse sido extremamente cansativo contar aquela história sinistra.
“E agora que eu te contei, vou ficar uns dias ou semanas tentando apagar novamente da minha cabeça a imagem da foto preta e branca no túmulo, bem como o nome dele, que eu temo pronunciar até mentalmente porque acho que ele vai escutar como se fosse um chamado”
Eu fiquei em silêncio vendo-o respirar eufórico, não era brincadeira. Não sei exatamente o que ele realmente vivenciou, mas aquilo era real para ele e desde então eu só fico em silêncio naquele momento de passar na frente do cemitério e quando ele some dos nossos sentidos voltamos a conversar como se nada tivesse acontecido.
Real ou não, só sei que não me atrevo a olhar naquela direção mais…