As cores de Barbacena
Livro revela uma cidade cheia de história, cores e personagens inesquecíveis
Por Edson Brandão (*)
A história é cíclica e os ciclos se cumprem com uma surpreendente exatidão matemática, tal qual as órbitas e trajetórias dos corpos celestes no universo. Muitos chamam isso de fatalismo, outros apenas coincidência. Em 1821, há exatos 200 anos, um jovem oficial militar inglês, Henry Chamberlain (1796-1844) lançava no seu país, um livro com o título “Views & Costumes of Rio de Janeiro”, na verdade, um álbum com 36 gravuras coloridas e acompanhadas de textos descritivos do que seria a capital do Brasil e arredores, às portas da sua independência. Em um tempo sem fotografias e com as reproduções de imagens coloridas ainda bastante precárias, o livro fez incrível sucesso, pois matava a curiosidade dos europeus acerca de um nascente império tropical e exótico, rico e miserável ao mesmo tempo! Coincidência ou não, em 2021 vivemos o lançamento do livro “Cores de Barbacena, Uma viagem pela História da cidade”, da C/Arte Editora. Assim como o material de Chamberlain revelou um Brasil desconhecido, Cores de Barbacena se coloca como um álbum de gravuras feitas pelo artista Waldir Damasceno que traz para olhos ávidos de curiosidade como seria a face da velha Barbacena – registrada em fotos preto e branco – se cores saltassem da paleta de um pintor para cada paisagem retratada.
O curioso é que apesar de não figurar no citado livro do inglês viajante, a imagem mais antiga que conhecemos de Barbacena foi feita em 1820, justamente pelo talentoso Chamberlain. Trata-se de uma pequena aquarela que mostra uma cidadezinha bem mineira, a Igreja da Piedade, os telhados do casario e o verde intenso dos quintais descendo nos flancos da alongada colina onde hoje se assentam a Rua XV e a Praça dos Andradas…
Parece até que Chamberlain e Damasceno combinaram para que este reencontro ocorresse dois séculos depois, provando que nem o tempo e a modernidade fariam desaparecer a Barbacena leve, colorida e singela que todos nós gostaríamos de conhecer.
Com 153 páginas, 61 aquarelas e algumas imagens ainda inéditas, como a igrejinha de São Francisco de Paula e o Teatro Odeon (sim, Barbacena teve um teatro!), o livro Cores de Barbacena, idealizado e organizado pelo Desembargador Doorgal Andrada, que alterna sua dedicação à magistratura com a paixão pela pesquisa história, complementa as recriações da paisagem barbacenense, agora plena de cores, com um inventário de percepções e citações de personagens históricos do Brasil e do mundo que, em épocas diversas e por razões as mais variadas, cruzaram suas histórias de vida com o antigo Arraial da Igreja Nova, depois vila e cidade de Barbacena. Segundo Doorgal, que teve o apoio do jornalista Idinando Borges em algumas pesquisas, foram centenas de fontes e obras consultadas para se extrair muitas vezes um único, mas revelador parágrafo ou a frase marcante.
De Roberto Carlos ao inconfidente Tomás Antônio Gonzaga, qualquer referência que conectasse Barbacena a uma das 72 personalidades aleatoriamente citadas na capa do livro serviram para que o arguto Doorgal fizesse o link que nos revela como Barbacena tem se inserido vida cultural, política e na identidade de nós mineiros e brasileiros ao longo de décadas. O que Quincas Borba, Macunaíma, Marie Curie e Rui Barbosa têm em comum, além de chegar e sair da cidade pela Estação Ferroviária, só lendo cada verbete da obra para saber…
Neste livro de história “disfarçado” de almanaque de curiosidades e álbum de gravuras, está condensada a síntese de um povo e de uma cidade que praticamente viu Minas Gerais nascer. Desde a Borda do Campo, dos bandeirantes e dos Puris, dos primeiros africanos e dos italianos, cada qual vivendo sua diáspora, aos liberais e republicanos, lá está Barbacena multicolorida e caleidoscópica. Às vezes, ponto de partida e de chegada, frequentemente portal de passagem do Caminho Novo à BR40, nada e ninguém passa incólume por estas alturas frias e acolhedoras da Mantiqueira.
Concluído em plena Pandemia do Covid-19, por isso sem a chance de um lançamento na primeira edição, o livro Cores de Barbacena chegou à segunda tiragem com alguns acréscimos e boa aceitação dos leitores, que aprovaram o conceito despretensioso e a maneira leve com que ele trata a história iconográfica e social da cidade. Os prefácios da produtora cultural Maria da Glória Bittar de Castro Pereira e do arquiteto Antônio Carlos Duarte convergem na opinião de que o livro é uma declaração de amor à cidade, nem sempre devidamente amada por quem dela deveria cuidar e valorizar, mas ainda assim capaz de despertar nostalgia e um olhar carinhoso por parte dos barbacenenses de fato ou de coração.
E por falar em paixão, um dos momentos mais emblemáticos da pesquisa que envolveu a feitura do livro, assim como a revelação da imagem mais antiga – a aquarela de Henry Chamberlain – é o destaque que o organizador Doorgal Andrada dá à citação mais antiga de Barbacena em um texto literário e sentimental e não nos tradicionais documentos oficiais, tais como escrituras de sesmaria ou registros batismais. Trata-se da Lira XXXVII, do poema “Marília de Dirceu”, escrito pelo poeta inconfidente, Tomás Antônio Gonzaga (1744 -1810). Como uma história autobiográfica, o pastor Dirceu (Gonzaga) ama Marília (Maria Doroteia Seixas Brandão), mas o apaixonado Dirceu é preso e na masmorra, ouvindo um pássaro canoro, símbolo da liberdade, imagina que ele voe da prisão, no Rio de Janeiro, até a casa de sua amada, em Vila Rica, para levar a ela uma mensagem de amor. Esta espécie de “tuíte” arcadista descreve o caminho que o passarinho deveria seguir do Rio até chegar a Ouro Preto, na verdade, o trajeto do Caminho Novo. Assim, na quarta quadra, Tomas Gonzaga escreve:
“…Toma de Minas a estrada,
Na Igreja Nova, que fica
Ao direito lado, segue
Sempre firme a Vila Rica.”
Apesar de Barbacena já ter recebido naquela época o nome do governador português que determinou a prisão do poeta, este ignora o novo nome da vila e usa a denominação primitiva do arraial, “Igreja Nova”, como referência básica para o caminho rumo a Ouro Preto.
Portanto, foi assim, no meio de um romance impossível e de uma conspiração política que entramos para a memória literária e afetiva do Brasil…
(*) Edson Brandão. Membro efetivo da Academia Barbacenense e Letras, cadeira 32. Membro correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de São João Del-Rei.