30 anos do Plano Real: uma jogada de mestre ou um blefe de truco?
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Você já jogou ou costuma jogar truco? Se sim, você provavelmente sabe que este é um jogo de blefe, ou seja, é muito comum que o jogador grite “truco” sem ter nas mãos nenhuma carta que lhe dê a capacidade de ganhar a rodada, na esperança de que os outros jogadores acreditem nele e desistam antes do jogo seguir. Pois bem, o famoso Plano Real, que este mês completa 30 anos de sua concretização, foi, de muitas formas, um grito de truco de alguém que não tinha nenhuma carta boa nas mãos. E hoje eu vou te contar mais sobre como isso funcionou.
Um pouco do contexto histórico da inflação
Qualquer um que tenha mais de 50 anos de idade sabe, na prática, que o Brasil tem uma longa história com a inflação. Já tivemos que conviver com um percentual de aumento de preços acima de 6.000% ao ano. Se você não tem a idade que eu mencionei no início deste parágrafo, experimente perguntar aos mais velhos sobre como era a experiência de ver o funcionário do supermercado remarcando os preços dos produtos diariamente antes mesmo de você chegar ao caixa.
E não é como se ninguém tivesse tentado resolver o problema. Antes do Plano Real, diversos governos adotaram múltiplas medidas econômicas para frear a inflação. Não é à toa que somente entre as décadas de 1980 e 1990 tivemos 5 planos malsucedidos. São eles: Plano Cruzado, Plano Bresser, Plano Verão, Collor I, Collor 2.
Com o impeachment do presidente Fernando Collor, Itamar Franco assumiu a liderança do país junto com o desafio de conter uma inflação ainda pior. Por isso, ele e sua equipe foram responsáveis pelo tão conhecido Plano Real. Mas como ele funcionou de fato?
O Plano Real
Como eu sugeri no início desta coluna, apesar do nome imponente, o Plano Real foi um grande blefe de truco – que acabou funcionando. Sua implantação ocorreu entre 1993 e 1994 e foi dividida em 3 fases.
Na primeira fase, o governo focou na otimização do orçamento público. Para isso, elevou impostos, reduziu gastos e permitiu que parte do dinheiro arrecadado para despesas específicas – como saúde e educação – pudesse ser livremente utilizado para qualquer outra categoria de gastos. Isso porque boa parte da inflação ocorre por conta de gastos exagerados e má gestão do dinheiro público.
Na segunda fase, foi criada uma moeda fictícia chamada Unidade Real de Valor – URV. Esta moeda tinha como objetivo preparar a população para a adoção do Real. Durante esta fase, os preços dos produtos e serviços eram divulgados em URV, no entanto, o valor era convertido em Cruzeiros Reais ao fazer o pagamento. Para que isso funcionasse, todos os dias o Banco Central atualizava o valor da paridade entre URV e CR$, isto é, quantos CR$ eram necessários para pagar 1 URV.
Dessa forma, aos poucos as pessoas se acostumariam ao Real, dado que elas viam os preços dos produtos não mais naqueles números gigantes – como acontecia com o CR$, onde um carro popular custava milhões – mas sim em Reais.
Na terceira fase, foi de fato implantado o Real no Brasil, substituindo 1 URV por 1 Real e fazendo com que esta se tornasse a nova moeda utilizada no país. Porém, talvez você se pergunte como o plano poderia funcionar se naquela época os preços eram remarcados diariamente?
Bem, a diferença do Plano Real para seus antecessores é que, para sustentar a nova moeda, o Brasil buscou dólares de investidores do mercado financeiro para formar uma grande reserva que fosse capaz de artificialmente fazer 1 real equivaler a 1 dólar. Quem viveu nessa época sabe que 1 dólar chegou a custar apenas R$ 0,85. Porém, claramente isso era mantido de maneira artificial para que o plano funcionasse.
Mas como essa equivalência de 1 para 1 segurou a inflação? Vamos a um exemplo prático:
Imagine que você era um vendedor de celulares em 1994 e que cada aparelho custava R$ 1.000. Motivado pela memória da inflação, você decide aumentar o preço do seu produto para R$ 3.000 após 5 meses.
Acontece que, como 1 real equivale a 1 dólar, importar da China um aparelho celular igual ao que você vende se torna muito mais barato, de modo que o aparelho chinês custa 1.500 dólares e, ao vir para o Brasil, R$ 1.500.
Veja que, neste cenário, você não conseguirá vender nenhum celular por R$ 3.000, logo, o maior preço que você poderá praticar é o de R$ 1.500.
Dessa forma, com uma invasão grande de produtos importados no país, dólar barato e possibilidade de as indústrias nacionais importarem máquinas para se modernizarem e aumentarem a produtividade, a inflação pode ser contida.
Com isso, o Plano Real foi perfeito?
NÃO! Nem perto disso, definitivamente. Precisamos parabenizar todos os envolvidos em sua criação e, de fato, não podemos deixar de dizer que foi um plano genial e que trouxe a estabilidade que o país tanto precisava. Mas além de ter trazido consequências, sabemos que ainda temos uma moeda muito fraca e uma economia fragilizada.
Um dos principais pontos que corrobora a não perfeição do Real é que, ao manter a moeda em 1×1 com o dólar, tornamos as exportações muito caras e prejudicamos o turismo naquela época.
Veja que os preços dos produtos brasileiros hoje não necessariamente são os mais competitivos do mundo; imagine então na década de 1990, em que a indústria era ainda menos desenvolvida. Além disso, para um norte-americano, viajar para o Brasil era mais caro do que ir para a Europa. Logo, muitos foram prejudicados com estas medidas no curto prazo. Já quando a paridade de 1×1 foi encerrada, o dólar voltou a se valorizar e o preço dos produtos e serviços sofreu uma nova elevação – ainda que não nos mesmos moldes pré-Real.
Além disso, se falarmos de tempos mais recentes, entre 1994 e 2024, o Real se desvalorizou aproximadamente 708%, enquanto o dólar perdeu próximo de 112% no mesmo período. Ou seja, nosso dinheiro segue perdendo força ao longo do tempo, ainda que em menor proporção.
A prova disso é o que vemos na prática atualmente, seja nos postos de combustíveis, nas gôndolas de supermercado, nas viagens, etc.
Conclusão
O Plano Real foi bem-sucedido em conter a hiperinflação, mas ele deveria ter sido apenas o começo de uma série de medidas e reformas que buscassem solucionar em definitivo o problema da inflação e dos gastos públicos do Brasil.
Como tais fatos não aconteceram, infelizmente vivemos em um círculo vicioso onde, de tempos em tempos, precisamos nos preocupar com o monstro da inflação, como já ocorreu algumas vezes nos últimos 30 anos.
É válido celebrarmos a nossa conquista de estabilidade econômica que o Plano Real nos trouxe, mas não podemos tratar isto como definitivo. Tendo em mente o que o país viveu entre 1980 e 1990, devemos buscar soluções junto aos governos – incluindo uma boa gestão dos gastos públicos – para garantir que não vamos precisar de um Plano Real II nesta nossa terra rica em histórias econômicas que nunca deveriam ter existido.
Lembre-se sempre que toda história tem dois lados e conhecer ambos é importante para que possamos ser mais críticos e assertivos!