100 anos de Modernismo
Se 1922 foi bom, 1924 foi muito melhor!
Por Edson Brandão
Neste ano da graça de 2022, dois momentos históricos atingem, respectivamente, 100 e 200 anos. Enquanto o “grito do Ipiranga” de D. Pedro I ressoa como um brado de libertação do Brasil ante a dominação colonial portuguesa, ainda que quase sempre paire a dúvida se ficamos realmente livres, o mesmo se dá com a célebre “Semana da Arte Moderna de 1922”, onde os filhos da elite cafeeira de São Paulo deram o grito e supostamente nos libertaram da arte acadêmica, conservadora e com sotaque francês…Será? Perguntam os detratores dos Modernistas, grupo acusado de produzir mais barulho do que uma real emancipação cultural “tupiniquim”, para usar um termo bem caro aos seus protagonistas. Há quem diga que até os tomates, lançados por estudantes conservadores, no profeta modernista Oswald de Andrade, foram encomendados.
Aos que duvidam que o Brasil é de fato livre e moderno, que atirem o primeiro tomate!
Assim como a semana dos políticos de Brasília é mais curta do que a dos pobres brasileiros comuns, a Semana de Arte Moderna durou apenas três dias: 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922. A música, a poesia e a arte ali apresentadas propunham uma ruptura com o academicismo e o parnasianismo em prol de uma identidade artística e uma estética genuinamente brasileiras. Se o ano de 1922 foi um marco, para nós mineiros, tidos e havidos como tradicionalistas e conservadores, no entanto, talvez o ano de 1924 tenha ainda mais importância, pois a passagem dos principais nomes do movimento em viagem pelo circuito das cidades históricas de Minas Gerais vai definir os rumos do chamado Modernismo brasileiro, dando substância para seus famosos manifestos: PAU BRASIL (1924); VERDE AMARELO (1926); ANTROPOFÁGICO (1928) e ESCOLA DA ANTA (1929).
Pouca gente sabe, mas os tais modernistas nutriam profunda identificação com Minas Gerais. Em 1919, Mário de Andrade veio pela primeira vez a Minas e seu olhar atento às velhas e esquecidas cidades coloniais mineiras, à arquitetura e arte barroca feitas por artistas mulatos, como Aleijadinho, despertou nele a convicção de que aqui se fez pela primeira vez uma arte genuinamente brasileira. Os artistas “deglutiam” a estética europeia e digeriam e arrotavam misturas indígenas e africanas. Em 1924, entre 15 e 30 de abril, participaram de uma nova caravana, expoentes artísticos e personalidades ligadas ao grupo formado em São Paulo: Oswald de Andrade, seu filho Nonê, com apenas 11 anos, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, o jornalista René Thiollier, a fazendeira Olívia Guedes Penteado, o advogado Goffredo Telles e o grande poeta franco-suíço Blaise Cendrars, na ocasião conhecendo as entranhas do País e fazendo contatos imediatos com a classe intelectual brasileira. A intenção era passar a Semana Santa em Minas Gerais e chamaram esta excursão estética e filosófica de “Viagem de redescoberta do Brasil”. Chegaram por Juiz de Fora e rapidamente passaram por Barbacena até São João del-Rei, seguindo o serpentear do Rio das Mortes pelo trenzinho da Oeste de Minas. Reminiscências de alguns membros da expedição relatam que as passagens só foram obtidas depois de um “cambalacho” feito com o chefe da Estação Ferroviária de Barbacena. Algo digno de um personagem bem modernista, Macunaíma, que no livro de Mário de Andrade passa por Barbacena só para tomar leite nas tetas de uma vaca… ao invés de zebu, seria uma pura holandesa trazida para Sítio (Antônio Carlos) pelos Sena Figueiredo?
Da passagem da excursão por Barbacena, quase nenhum registro restou, salvo uma fotografia da Igreja da Boa Morte cheia de fiéis na Semana Santa, feita pelo autor da Pauliceia Desvairada. Quinze anos depois da viagem, Tarsila do Amaral, cuja obra emblemática, o “Abapuru” é a tela brasileira mais valiosa do mundo, relembra que na viagem conceituou sua pintura “Pau Brasil”. Impactada pela paisagem que via do trem “ou sentada em uma pedra em Barbacena” (palavras dela) , em croquis feitos no caminho… Na verdade, Tarsila buscava um estilo e uma temática que iriam modificar sua obra para sempre. Abapuru, “o que come gente”, em tupi-guarani, enfatiza a ambição antropofágica e exportadora que o Modernismo queria dar à produção artística nacional. O pau- brasil foi nossa primeira exportação, portanto a Arte Pau Brasil seria nosso melhor artigo destinado ao mundo! E a Minas introspectiva e isolada, incrivelmente sinalizava o caminho da universalidade a ser conquistada. Tarsila escreveu depois da viagem a Minas Gerais: “Encontrei em Minas as cores que adorava em criança. Ensinaram-me depois que eram feias e caipiras… Vinguei-me da opressão, passando-as para as minhas telas: azul puríssimo, rosa violáceo, amarelo vivo, verde cantante… Pintura limpa, sobretudo sem medo dos cânones convencionais. Liberdade e sinceridade, uma certa estilização que a adaptava à época moderna.”
Se em 1922, as portas do Modernismo se abriram, em 1924, aqui nas margens do Rio das Mortes e nas barrancas do Rios das Velhas, as portas da percepção se escancararam de vez. Em artigo de 1952, no jornal carioca “A Manhã”, o crítico literário José Brito Broca, pontuou: “O que merece reparo nessa viagem é a atitude paradoxal dos viajantes. São todos modernistas; homens do futuro. E a um poeta de vanguarda que nos visita, escandalizando os espíritos conformistas, o que vão eles mostrar? As velhas cidades de Minas, com suas igrejas do século XVIII, seus casarões coloniais e imperiais, numa paisagem tristonha, onde tudo é evocação do passado e, em última análise, tudo sugere ruínas. Pareceria um contra-senso apenas aparente. Havia uma lógica interior no caso. O divórcio da realidade brasileira, em que a maior parte dos nossos escritores sempre viveu, fazia com que a paisagem da Minas barroca surgisse aos olhos dos modernistas como qualquer coisa de novo e original, dentro, portanto, do quadro de novidade e originalidade que eles procuravam.”
Edson Brandão é membro efetivo da Academia Barbacenense de Letras, cadeira número 12.